terça-feira, 30 de abril de 2019

Fragmentos III de ti e de mim



Vi-te crescer a meu lado enquanto pude. Exigi de ti como não exigi de mim, com receio de reconhecer que me falhava a capacidade de dar uma resposta precisa. Desconfiei mais de mim do que de ti e em ti vi muito melhor do que vi em mim. Por isso te conheci melhor do que me quis conhecer e nesse altar de exemplos que vi perfeitos depositei-me em graças.

E tu cresceste, admirável e de asas bem abertas, enquanto eu me esqueci de o fazer. Mirrei de tão pouco me olhar enquanto comecei a afastar a inveja do salto que reconheci em ti. Fui fraco onde via força, fui cobarde onde vi coragem. Fui pouco do que devia ter tentado ser enquanto via muito de quem queria ser.

Para não ver as minhas falhas depositei o meu olhar na tua grandeza. Para não me perceber imperfeito valorizei-te em tudo o que de melhor tinhas. Deixei-te desafios para te superares e esqueci-me de propósito de me perguntar se era capaz sequer de os aceitar.

Quis-te a argamassa do meu castelo de cartas, a linha solene que une os pontos, a cor que preenche o final de tarde ou o som melodioso que dá sentido à natureza. Gravei o som das palavras sagradas, repeti os gestos harmoniosos, decorei as expressões genuínas e estudei o comportamento esmagador. Para o repetir sempre que de mim exigisse quem não sabia ser.

Quis-te tanto quanto não me quis a mim. E por isso te fiz crescer, porque quis mais de ti do que alguma vez quis de mim. 

domingo, 28 de abril de 2019

Fragmentos II do calor que a Maria combatia



"Este calor é fodido..."

Para início de conversa nada mal, logo a marcar o tom que vai pautar as palavras trocadas. Era o único café aberto numa aldeia incógnita, como tantas outras neste país, tão afastada de tudo como as demais, naquele ritmo próprio feito de pessoas na rua a ver o dia nascer, crescer e morrer. Nesta não havia pessoas na rua, o calor assim o desaconselhava. Excepto o amputado, o velhote que dividia o tempo paredes meias com a bomba de gasolina cujo maior cliente era o pó e a ferrugem e o pequeno café.

Debaixo da boina cujo tempo não perdoou no desgaste, como no rosto marcado pelos anos, a vontade de falar era superior ao desejo do sossego próprio que aquela tarde tinha valido. Fez-lhe a vontade e estendeu a mão, assumiu-se como destino da solidão alheia.

"Ainda há dias tinha o lume aceso em casa, que o frio dançava com os meus ossos. Agora estou aqui a derreter", rematou o senhor, que abriu as páginas do livro da sua solidão.

Das consultas que realizava na capital, das análises ao problema que lhe havia valido um fígado novo, das viagens que realizava regularmente (no qual, lamentou, tinha de passar "por aquele estádio feio"...) e sobretudo da Maria. A Maria que deixou de existir para lhe tomar conta da roupa, para pôr o lume adequado, para o ouvir e ajudar em todos os sinais do tempo. Simplesmente a Maria, a sua Maria.

O braço que já não tinha não lhe fazia mais falta do que a Maria.

"E dava o outro...", deixou cair, antes de se afundar na cadeira, absorvido nas saudades. Ao silêncio seguiu-se um sentido aperto de mão antes da despedida. Não era a Maria, nunca o poderia ser, mas fui um pouco de Maria que pude ser.


sexta-feira, 19 de abril de 2019

Fragmento I direto do reflexo da água



Era uma tarde igual a tantas outras. O sol queimava lá no alto, num abraço caloroso que se habituara a sentir. Tinha o horizonte azul pela frente e o som das ondas para o acompanhar. Não se lembrava quando começara aquela paixão pelo mar, que tanto, e em tantos momentos, o aturara. Mas sentia-a vibrar em si, naqueles momentos de concentração e de prazer.

Naquelas horas era senhor e dono do Reino de Areal Deserto, do Vento no Rosto e do Embalo das Ondas. Conhecia-lhe as manhas, as leis e as regras, assim como nunca se escondera daquele espaço. Estavam em sintonia nos seus propósitos. Afinal para quê? Se não se podia partilhar no seu reino onde o faria? Tinha as chaves para usar quando quisesse e não se proibia de o fazer.

Segurava na mão a sua cana, indispensável para aquelas horas que guardara para si e que pediam poucas desculpas para existir. Lembrou-se com um sorriso o dia que chegou ao areal e deu conta que se havia esquecido da sua cana. Quase jurou ter ouvido os aplausos dos peixes e as gargalhadas das ondas naquele momento trapalhão.

Desta vez, não, trouxera tudo. Preparou-se, suspirou e lançou a linha ao mar. Começava aí a ligação tão próxima e honesta, em luta contra o destino de um qualquer peixe, de preferência gordo, que ele desejava levar para jantar. 

Passou uma hora e nada, somente o silêncio interrompido por um qualquer instagramer anónimo que colecionava a vida atrás da câmara para o aplauso virtual igualmente anónimo. Já se habituara a isso e dava o seu contributo modesto para a felicidade dos outros. Bastava aliás estar sentado, com a cana na mão, para tornar-se referência de uma imagem secundada por uma qualquer legenda inspirada em tantas citações e uma chuva de 'gostos' .

Passou nova hora, e nada. Conhecia a sensação, estava já preparado para ela, não o fazia perder o pé.

O sol ia baixando no horizonte e ameaçava tornar-se um final de tarde poderoso, com todas as cores refletidas no horizonte e nas costas das nuvens. Aquela despedida tão esplendorosa e irrepetível.

Continuava o combate ao desinteresse da vida animal pela sua linha e pelo isco. O cesto estava ainda vazio e assim prometia manter-se.

Distraiu-se quando passou um casal jovem de namorados, muito próximos um do outro, em segredos, sorrisos e olhares cúmplices, de mão dada um com outro, certamente em juras de amor eterno. "Mal eles sabem" , pensou para si mesmo. Mas não lhes levou a mal, era um quadro que já havia assistido em múltiplas ocasiões. Tal como já esperava o senhor de idade, que fazia os seus exercícios limitados ao final de tarde para manter aquela essência de juventude. Nunca falhava.

Sentiu que não era o seu dia. Que os peixes passaram incólumes aos seus truques, ofertas e expectativas. Que o som das ondas continuaria mesmo quando tivesse abandonado o reino rumo ao resto da sua vida. Não fazia mal, ele tinha as chaves do seu domínio à mão e utilizaria sempre que quisesse, pois não precisava de desculpas para o fazer.

Assistiu sentado ao magnífico espetáculo do final do dia, quando o sol se abre por completo numa despedida avassaladora, repleta de cor. Nunca deixaria de levantar os olhos para aquele quadro de luz criado. Pegou num grão de areia para a sua coleção de dias que não haviam sido seus. E saiu, não sem antes despedir-se com gratidão daquele espaço, enquanto cumprimentava o senhor de idade que, sem falhar, lançara-se nos seus exercícios vagarosos.




segunda-feira, 15 de abril de 2019

Passo XI que até o Benfica vem ao barulho


Sentou-se no chão encharcado. Pouca diferença fazia naquele momento, mais ou menos molhado. Sentiu conforto naquela comunhão entre si e o espaço envolvente. Como ele, também aquele chão anónimo e duro que o sustentava tinha sofrido com a violência da água e se não se queixava, quem era ele para o fazer?

Tirou o pensamento de si mesmo e concentrou-se em respirar o ar puro que lhe era oferecido. Inspirou profundamente, com a mesma genica com que expirou. Repetiu o gesto até sentir uma sensação de sossego no corpo esgotado. Gostou. Voltou a deixar-se cativar pelo gesto mais básico de qualquer ser humano: respirar. Era naquela simplicidade estonteante que estava a beleza do momento e o ar puro que circulava pelo corpo ofereceu-lhe cores já esquecidas.

Lembrou-se com carinho do efeito do sol no rosto. Da brisa do vento no seu cabelo curto. Da família reunida à mesa. Da pele de galinha nas águas geladas da sua serra. Daquelas linhas que leu. Do calor da lareira num dia frio. Do gosto da sopa quente quando estava adoentado. Do tom da música que o inspirava. De sorrisos e gargalhadas. Do gosto do chá. Dos momentos que tremeu de felicidade. Do nó na barriga das expectativas. Dos passeios sem rumo. Do gosto do gelado num dia quente de verão. Do conforto da almofada. Das fotografias que tirou em momentos irrepetíveis. Das palavras de conforto. Dos golos do Benfica. De olhares ternos, de admiração. Do gosto pela escrita. Reviu os prazeres simples da vida inspirando e expirando, inspirando e expirando.

Foi um regresso a si mesmo, aos seus alicerces mais naturais que a vida lhe havia oferecido. Abandonar-se naquele momento apaziguador, concentrado naquele ar revigorante. E porque não? Era de borla, uma dádiva tão imediata que seria ridículo não aproveitar. Qualquer plano de reconstrução teria sempre de começar pelos alicerces, testados na sua força, resistência e profundidade.

Naquele momento singular de comunhão dispôs-se a submeter-se a todos os testes. Os seus, os desafiados por outros, as provas de tudo o que rodeava. Esperou respostas durante muito tempo, sem que elas chegassem e talvez fosse altura de tentar fazer as perguntas certas. 

sábado, 13 de abril de 2019

Passo X do desafio



Sozinho destacou-se numa multidão de fragmentados. Assim se reconheceu no reflexo da água que o rodeava. Olhou para si dividido, com múltiplas formas a retribuírem com estranheza o seu olhar.  Naquela água que havia caído em seu socorro, vislumbrou fendas imensas naquele quadro que a natureza havia organizado para seu deleite.

Disconexo e confuso. Sentiu-se réu daqueles fragmentos que teimavam em descolar as várias partes do seu ser, sem harmonia ou sequer beleza. Eram poucos que passaram a muitos, grandes que foram reduzidos. Nítidos que caminhavam para um borrão. Falhou a memória para lembrar o rosto fluído e fixou-se naquele remendo possível, que a água não mentia.

Aquela multidão fragmentada era ele mesmo, sem filtros e sem reservas, impaciente e irrequieto consigo mesmo, uma sombra sem corpo que a sustentasse. Era uma miríade de caminhantes que, mais limpo, com energia revigorada, se propunha reconstruir.

Olhou-se atentamente naquele puzzle refletido. Tinha de se olhar, de frente, e assumir os erros que lhe carregavam as costas. Nessa convicção de que o que estava para trás ficava exatamente onde devia ficar. Era esse o seu desafio.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Passo IX de água



Aquele banho foi um bálsamo para uma alma ferida. Cada gota de água que lhe percorreu o corpo despido, com marcas da preguiça, levou consigo, para o chão esquecido, um sonho vencido. Uma memória antiga que teimava em abandonar. Um desejo que havia ficado por cumprir. Uma desilusão que demorava a cicatrizar. Abandonou a armadura e aproveitou o momento para desfrutar daquele momento de paz.

Queria saboreá-lo, de tão esquecido estava. Quis aprofundar o buraco donde saía essa calma para garantir que deixava uma abertura por onde voltar mais tarde. Iria precisar dele, sem dúvida, até saber por completo o mapa para esse tesouro perdido. Precisava de um X, tinha de o marcar bem fundo na alma para garantir que não voltava a perder aquela pequena letra tão essencial.

Era para isso que tinha arrancado esta caminhada dolorosa. Para garantir-se, aos seus olhos, no seu pensamento, que chegava a quem haviam dito poder ser. Sentiu saírem de si tanto pó, tanta dor, mágoa, alegrias remotas e pensamentos duvidosos. Saltou parte do peso que lhe reduzia o movimento cansado, triste e sem brilho.

Reservou-se naquele momento a si e a si, mesmo. Recolheu a pinha para um lugar seco que, ao contrário dele, ela dispensava banhos. Já havia tido um, há pouco, que a tinha amputado.

Passou pela chuva como a chuva por ele. Quando as nuvens avançaram no horizonte, não foi possível vislumbrar raios de sol. Mas não fazia diferença, já se sentia mais quente.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Passo VIII de banho gelado



A revolta consumia-o, numa fogueira ardente interior que lhe gelava a alma, mais fria do que o tapete granítico que o rodeava. Olhou em redor, à procura do seu norte. O nosso caminhante sabia que ele existia mas estava hesitante em todas as direções que olhava. Sentiu a luta entre a vontade de resistir e a de abandonar-se. Eram conflitos potenciados por guerras internas, torrentes de pensamentos entrelaçados sem sequência aparente para lá de ele mesmo.

Era o orgulho a bater-se com a razão, o medo a digladiar-se com a coragem, o pânico a roubar espaço à paz, era a esquerda a baralhar a direita. Eram batalhas eternas que se havia habituado a viver, no seu espírito metódico e analista, mas não naquele ritmo. Parecia que a vida lhe pedia uma resposta sem ele a ter. Como se os sonhos quisessem regressar mas não houvesse palco para eles. As suas metas a pedir para aparecer mas sem distâncias para oferecer. O brilho do olhar a querer reacender-se sem fogo interior que o sustentasse.

Era um corpo a vibrar, regado a dor, aquele que o nosso caminhante carregado. Dizia-se que na mágoa as pessoas conhecem-se porque percebem o que têm dentro de si mas estava marcado, já, de cicatrizes. Recordou-se menino, recordou-se jovem e recordou-se homem e apelou a eles todos a ajuda que lhe faltava.

O nosso caminhante sempre se sustentara muito em seu redor, nas pessoas que abriam brechas na armadura que carregava. Boas apostas, apostas não tão boas assim, tinha encontrado um suporte que hoje não existia. Hoje era ele, a correr contra o seu tempo, a caminho de ser alguém. Para alguém, por alguém. Esse alguém teria de ser ele. Por si. Para si.

Começou a cair a chuva. Deixou-se abraçar pela água gelada, de braços abertos. Despiu-se, ficou como veio ao mundo. Naquele ermo não tinha pudores nem reservas e deixou-se limpar, de corpo e alma. As lágrimas que tanto teimavam em cair primaram pela ausência e naquele momento teve um vislumbre de paz.



sexta-feira, 5 de abril de 2019

Passo VII do norte




Naquele refúgio de pedra que o acolheu, onde as costas pesadas se encostaram num duelo de força com a aspereza do granito, o nosso caminhante não conseguia afastar o pensamento da lágrima que havia assistido cair. A sensação de perda assaltou-o violentamente, como se um pedaço de si tivesse sido abruptamente arrancado. Recordou-se da sua vida, das pessoas que o marcaram, das marcas recentes e de quem já não o poderia voltar a marcar.

Desfilou rostos, sorrisos e as expressões de quem já não estava e aos olhos de quem já não poderia sentir orgulho, felicidade, alegria e comunhão. Passou em revista gestos, celebrações, promessas e ensinamentos que duravam enquanto a alma tivesse força para bater. Disse-lhes os nomes em voz alta, saudoso, amargurado, a apelar a uma inspiração e força sobrenatural. Gritou aos ventos a dor para soltar os laços que prendiam o coração. Apertou o ar no punho fechado amaldiçoando um destino que se revelara curto para qualquer um daqueles nomes. Lamentou a sua impotência para contrariar desígnios mortais e lutou para não se resignar a uma aceitação incrédula.

Lembrou-se de cor todos os nomes que gritou ao vento, sem filtro. Desenhou no olhar os rostos. Ouviu no vento as vozes. Desenhou no horizonte quadros de memórias distantes. Trouxe ao de cima o que de melhor havia cativado de cada um. Recordou o adeus, doente e cansado. Soltou lágrimas partilhadas com a terra que o rodeava.

As lições estavam a brotar do esquecimento a que se tinha votado. Muitas das palavras sensatas que ouviu voltaram a soar nos ouvidos. Sentiu no pulsar do coração a amargura do desaparecimento mas sentiu nas veias o sangue quente dos exemplos deixados. De quem emprestou uma tranquilidade para poder ser ele mesmo e crescer. De quem o acompanhou, nos primeiros passos, de quem limpou os restos das primeiras refeições, de quem lhe mostrou um mundo além do seu, de quem o desafiou a novas sensações, de quem lhe abriu o coração à alegria, de quem o viu passar de bebé a criança, de jovem a adulto. De quem fez viajar e perder-se nas palavras e nas aventuras, no riso e na alegria, nas confissões e reprimendas. De quem tinha a última palavra sábia quando a primeira era já desviada. E em todos os que deram as mãos num esforço conjunto para ser quem era, naquele ponto.

O que diriam, nesta altura, sabendo-o tão perdido? Uma pergunta que não ousou procurar resposta, tamanha a vergonha que o assaltou. Eles já não eram a agulha da bússola mas o mapa que haviam ajudado traçar estava presente. A Rosa dos Ventos havia soprado já em todas as direções mas o norte não estava desaparecido. Haveria de surgir, no melhor momento, assim os erros, as falhas e a imprecisão de si mesmo desvanecesse na areia do tempo.

Quis guardar aquele momento para si. Porque as pessoas nunca partem, na realidade, enquanto houver uma recordação. E naquele corpo batido, as recordações acordaram para fazer suar toda a sua inspiração e resolução. Era pois momento de respirar, profundo e longo, e recordar com saudade quem já não estava. De quem tinha abandonado muito cedo. De quem já não o iria ver voltar a sorrir. Reservou junto ao peito aquele pinha já amputada de dor e prometeu ser-lhe um exemplo. Um exemplo tão grande ou maior do que aqueles que havia absorvido. Daqueles que já se iam repetir.

"Você não encontrará nenhuma paixão se se conforma com uma vida que é inferior àquela que é capaz de viver" - Nelson Mandela

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Passo VI de solidariedade




Aquela lágrima, caída num silêncio de dor, foi o toque a reunir da sua coragem que havia ameaçado abandonar ainda há momentos. Não sobravam tantas lágrimas naquela pinha companheira e se o nosso caminhante estava ali por si aquele laço marcado pela gota caída transformara-se num pacto sem palavras de empatia.

Foi tempo de respirar fundo e começar a dar aos sapatos, sujos e desalinhados, como a sua roupa. Era tempo de se resolver, era tempo de fechar capítulos da alma, do coração e dos pensamentos. Era o seu tempo e, resoluto, arrancou, novamente marcado pelo peso no andar, pela respiração dorida e por uma alma que carregava um mundo sombrio.

Escolheu os atalhos mais longos, as margens mais distantes do rio para atravessar, os rochedos mais altos para escalar, as zonas mais densas da vegetação para atravessar. Fez uma escolha difícil a cada momento que vivia, foi sempre pelo percurso mais duro. Desafiou-se, puxou por si, tornou-se exigente, quis testar-se mais, como nunca havia sido.

Deitou-se para trás num pequeno banco selvagem, feito de pedra, rodeado de musgo para respirar. Lembrou-se de um filme que o havia marcado recentemente, sobre um homem que fazia escalada a solo em paredes íngremes em que qualquer erro era morte certa. Não aspirava a morte, certamente, mas a atitude havia ficado marcada no pensamento com alguma inveja à mistura. O movimento dos pés e das mãos naqueles monumentos graníticos, impressionantes, tinha de ser perfeitamente coordenado e preciso para evitar uma queda feia.

O nosso caminhante aspirava ao mesmo, perfeição para si mesmo, um equilíbrio entre a alma e o coração, entre a vida e sonho, entre o desejo e a ambição. Uma palete diversificada de cores no dia a dia, em perfeita harmonia, sons perfeitamente equilibrados, sabores sofisticados e precisos. Era o que se devia, depois de se ter interrompido na percurso que escolhera um dia. Em nome de quê? De um sonho que nunca realmente o foi, mesmo quando todos os seus pensamentos assim o diziam. Era ele, era a sua pinha companheira, era a natureza numa luta desleal mas solidária de superação.

"Não existe nenhum passeio fácil para a liberdade em lado nenhum e muitos de nós teremos de atravessar o valor da sombra da morte vezes sem conta até que consigamos atingir o cume da montanha dos nossos desejos" - Nelson Mandela