domingo, 31 de março de 2019

Passo V do abandono


Foi duro. Despertar. Sacudir a poeira de uma noite sem perdão, intensa e esgotante. Os olhos curaram-se das lágrimas que ameaçavam cair a qualquer momento, num gesto tão natural. O espreguiçar soube a pouco, sem vontade, inócuo.

Obrigou-se a olhar em frente, a ganhar coragem para a dura tarefa que tinha em mãos. Reconfortou-se com a pinha a seu lado, que não o havia abandonado. Ela não o julgava, não dava conselhos, não o lembrava das suas falhas. Simplesmente estava, disponível, pronta para os momentos.

O andar pesado marcou o arranque de nova caminhada. O peso nos ombros já se havia instalado para o lembrar dos desafios. Das dificuldades. De tudo o que havia pela frente.

Esta reconstrução própria ameaçava a coragem do nosso caminhante, disposto a abdicar de si mesmo para ser somente o que pudesse ser. Render-se. Longe de si mesmo, igual a tantos outros. Era o caminho mais fácil a revelar-se, tentador.

E porque não o haveria de tomar, se tantos outros antes de si o fizeram? Que se passeavam de sorriso conformado? Que já não se lembravam do brilho no olhar? De quem cruzara os braços para enfrentar os desafios sem se chatear, num espírito indolente? Porque não ser como os outros, como tantos o eram, e abandonar-se nas suas fantasias e apetites de um dia a dia passado, nunca vivido?

O pensamento assustou-o de tão sedutor se tornara. De tão próximo que estava. Estava à mão de semear, ali, para ser tomado. Ergueu o braço, enfraquecido, disposto a abdicar de si mesmo. De abdicar da sua quimera e dos seus desafios e aceitar toda a esmola que a vida lhe pudesse ainda trazer.

A mão ergueu-se e por entre os dedos vislumbrou a sua pinha. Inanimada, particularmente feia, calada, quando viu dela cair uma lágrima rugosa e áspera. A pinha chorava... por ele.

segunda-feira, 25 de março de 2019

O Passo IV do amanhecer



O dia acordou-o. Estremunhado, sentiu no corpo ensopado as reações violentas do sonho que o tinha trespassado noite dentro. Instintivamente chegou a mão procurando a sua pinha protetora. Esteve lá, a seu lado, durante a tormenta, uma fidelidade que raramente havia assistido.

Evitou fechar os olhos novamente, ainda com resquícios da violência das imagens reproduzidas noite dentro. A roupa colada ao corpo traduzia a violência das suas imagens, num frenesim catatónico de uma vida feita de escolhas que o tempo provou erradas. 

Sentiu a respiração voltar ao normal, pesada e inconsciente. E chorou. Grossas lágrimas de dor caíam pela face, abandonadas. Soluços incontroláveis de um corpo que pedia um sentido abraço. Um pranto revivido de outros tempos, mais jovens mas igualmente inconsequentes. 

Era tempo de respirar, focar-se no percurso que decidira fazer. Não podia falhar-se também aí, já bem bastava todas as falhas que carregava. Era tempo de arrepiar caminho pois só assim iria recuperar-se. E recuperado podia dar mais ao mundo do que aquilo que havia recebido até então.

"Você não encontrará nenhuma paixão se se conforma com uma vida que é inferior àquela que é capaz de viver" - Nelson Mandela

sábado, 23 de março de 2019

O Passo III de abismo



Chegou sem aviso, como qualquer sonho que se preze. Sem início igualmente para o apanhar desprevenido e sem possibilidade de voltar para trás. Quando percebeu, o sonho ditava o momento. 

Implacável, sentiu a realidade ao seu lado, sem escape, sem reservas. As trevas que tanto tinha tentado escapar entraram naquele fechar de olhos ditado pelo cansaço. O caminhante estava preso no mundo que tantas vezes tentara escapar. 

Um sonho, dois, três, todos somados e juntos. Implacáveis, rigorosos e exigentes, tomavam forma naquele fechar de olhos dorido, destinados a perseguir almas que não respeitavam.

Era o seu maior medo, abandonar-se num mundo sem controlo. Porque o pouco que controlava satisfazia-o de forma invencível. Sem pinha que o protegesse, entregue a si mesmo, destinado a uma luta desigual. Eram essas as sombras que estendiam o olhar num efeito paralisador sem rédeas. 

Era o futuro a pedir meças ao passado, era o presente sem orientação, ao sabor do vento. E que tempestade o invadia sem assombro. Que desnorte, que ponteiro de bússola descontrolado que o orientava, que tormenta que o rodeava. 

Sentiu-se sozinho rodeado de pessoas, claustrofóbico ao ar livre, a gritar mudo. Olhou em redor por um sinal de conforto mas o sonho ditara a indiferença e o vazio. Estava só consigo mesmo. E teria de olhar para onde nunca a alma enxergara. 

Era juiz e réu, culpado e inocente. Era o maior crítico de si mesmo como o maior fã. Era o diabo como o anjo. Era o melhor e o pior de si mesmo, sem amarras ao que era capaz de fazer. Era a segurança e a dúvida, o amor e o ódio, a confiança e a culpa. Era os extremos juntos e conjugados. Era ele mesmo. 

Inundado em suor, as imagens passavam na sua mente a um ritmo alucinante. Todas as escolhas que fez até aquele ponto foram a julgamento. Todas as pessoas com que se cruzou surgiram, por entre olhares de desdém, de indiferença ou de pena. Reviu todos os locais que visitou, mesmo quando estava noutro lado. Todas as palavras revisitadas, mesmo as que não disse. Até ao abismo. Até à falta de imagens. Até ao escuro. Era o futuro a chamar sem um passado fechado e um presente inexistente. 

O dia voltou a nascer mas parte do nosso caminhante tinha ficado perdida no mundo dos sonhos. E a caminhada recomeçou.

"Ser pela liberdade não é apenas tirar as correntes de alguém, mas viver de forma que respeite e melhore a liberdade dos outros" - Nelson Mandela 

quinta-feira, 21 de março de 2019

Passo II entregue aos sonhos


A paisagem entrava-lhe pelos olhos, a cada passo que dava. O nosso caminhante galgava terreno, sem destino definido, em aparente fuga de si mesmo. O seu respirar carregava o peso extra de um mundo caótico que o rodeava, levantando dúvidas que a sombra das árvores não conseguia reparar. Esta relação parasita toldava-lhe o raciocínio e deixava antever o pior, num baixar de braços que havia jurado não voltar a acontecer.

As dificuldades somavam-se entre cada respirar, valendo-se dos sentidos para descobrir vestígios de paz naquela densidade verde que a floresta emprestava. Se  não conseguia confiar nos pensamentos, tinha de receber auxílio que a natureza e o tempo lhe podiam emprestar. Estavam ali, à mão estendida, assim ele quisesse perceber.

Distraído no negro dos seus sentimentos recusava ajuda exceto de si mesmo. Queria crescer para além, subir mais alto, mais rápido e mais forte. Queria ir onde nunca tinha chegado, sentir o que havia perdido, pensar o que já havia pensado. Suplantar-se e tornar-se perto do potencial que sempre lhe haviam dito ter. 

A casa abandonada tornou-se um porto de abrigo de si mesmo. Sem vestígios de conforto, num local que o tempo tinha votado ao abandono, sentiu-se como parte da mobília. Nas paredes marcadas pela velhice encostou-se e fechou os olhos, deixando-se entrar no seu maior medo: os sonhos. Os poucos cumpridos, os poucos por cumprir mas nos muitos desfeitos. O sol abundava ainda naquela tarde mas naquele ponto do mapa o horizonte estava toldado de trevas. 

"Marcados nessas pedras você vai encontrar a dor de nossa luta, a tristeza de nossas perdas e os alicerces da nossa vitória" - Nelson Mandela

terça-feira, 19 de março de 2019

O Passo I entregue aos lobos


Os passos titubeantes iniciais são travados pelo medo. Do dia que começa a caminhar para a noite, da dança íntima entre sombras e últimos raios de sol projetada no chão em frente. Do local desconhecido, do percurso nunca antes tentado e do destino em estreia. Ingredientes que toldam o imaginário do nosso caminhante, dotado de uma mente fogosa e enriquecida, encharcado nas dúvidas que o assaltam a cada passo que se propõe dar.

Despojado de referências, o sopro no coração indiciava receio. Um nervoso começava a tomar conta dos sentidos no arranque do projeto. Questionou a necessidade, o propósito e o valor dos seus pensamentos. Sabia que sairia, duma forma ou de outra, no extremo oposto da partida, mais valioso e consciente de si mesmo. E essa ideia aquecia uma alma habituada a extremos.

Um sopro de vento arrancou um estremecimento do corpo no mesmo momento que fez cair uma pinha ao chão. Do alto do pinheiro, em queda livre, aterrou ao som de tiro de partida numa prova olímpica. Não se desfez, aguentou estoicamente a força do embate e guardou um espaço no solo.

Guardiã, guia e protetora, a pinha manteve-se imóvel conforme foi apanhada. Da observação, na mão, nasceu a convicção de que a pinha, pura de interesses, seria uma mais-valia única naquela sua jornada. Vestiu-se de sua guia do percurso, dado já o ter visto do alto antes de cair. Voluntarizou-se para ser sua a protetora pois podia tornar-se uma arma eficaz. E, não menos especial, tornou-se sua conselheira, pois provava que por muito forte que o embate seja, só se deixa destruir quem está feito para não cair.

O ânimo causado por uma simples pinha, que de beleza contava pouco, reconfortou o nosso caminhante dos seus propósitos, limpou a água que tantas vezes tinha caído dos olhos e vitaminou um ânimo desesperado por conforto. Nasceu um sorriso modesto mas desafiador nos lábios. A jornada seria dura mas a pinha tinha tempo para ir a seu lado, de mão dada, até onde o destino se encarregasse de ditar.

"Não é valente o que não tem medo, mas sim o que sabe dominá-lo" - Nelson Mandela