Era uma tarde igual a tantas outras. O sol queimava lá no alto, num abraço caloroso que se habituara a sentir. Tinha o horizonte azul pela frente e o som das ondas para o acompanhar. Não se lembrava quando começara aquela paixão pelo mar, que tanto, e em tantos momentos, o aturara. Mas sentia-a vibrar em si, naqueles momentos de concentração e de prazer.
Naquelas horas era senhor e dono do Reino de Areal Deserto, do Vento no Rosto e do Embalo das Ondas. Conhecia-lhe as manhas, as leis e as regras, assim como nunca se escondera daquele espaço. Estavam em sintonia nos seus propósitos. Afinal para quê? Se não se podia partilhar no seu reino onde o faria? Tinha as chaves para usar quando quisesse e não se proibia de o fazer.
Segurava na mão a sua cana, indispensável para aquelas horas que guardara para si e que pediam poucas desculpas para existir. Lembrou-se com um sorriso o dia que chegou ao areal e deu conta que se havia esquecido da sua cana. Quase jurou ter ouvido os aplausos dos peixes e as gargalhadas das ondas naquele momento trapalhão.
Desta vez, não, trouxera tudo. Preparou-se, suspirou e lançou a linha ao mar. Começava aí a ligação tão próxima e honesta, em luta contra o destino de um qualquer peixe, de preferência gordo, que ele desejava levar para jantar.
Passou uma hora e nada, somente o silêncio interrompido por um qualquer instagramer anónimo que colecionava a vida atrás da câmara para o aplauso virtual igualmente anónimo. Já se habituara a isso e dava o seu contributo modesto para a felicidade dos outros. Bastava aliás estar sentado, com a cana na mão, para tornar-se referência de uma imagem secundada por uma qualquer legenda inspirada em tantas citações e uma chuva de 'gostos' .
Passou nova hora, e nada. Conhecia a sensação, estava já preparado para ela, não o fazia perder o pé.
O sol ia baixando no horizonte e ameaçava tornar-se um final de tarde poderoso, com todas as cores refletidas no horizonte e nas costas das nuvens. Aquela despedida tão esplendorosa e irrepetível.
Continuava o combate ao desinteresse da vida animal pela sua linha e pelo isco. O cesto estava ainda vazio e assim prometia manter-se.
Distraiu-se quando passou um casal jovem de namorados, muito próximos um do outro, em segredos, sorrisos e olhares cúmplices, de mão dada um com outro, certamente em juras de amor eterno. "Mal eles sabem" , pensou para si mesmo. Mas não lhes levou a mal, era um quadro que já havia assistido em múltiplas ocasiões. Tal como já esperava o senhor de idade, que fazia os seus exercícios limitados ao final de tarde para manter aquela essência de juventude. Nunca falhava.
Sentiu que não era o seu dia. Que os peixes passaram incólumes aos seus truques, ofertas e expectativas. Que o som das ondas continuaria mesmo quando tivesse abandonado o reino rumo ao resto da sua vida. Não fazia mal, ele tinha as chaves do seu domínio à mão e utilizaria sempre que quisesse, pois não precisava de desculpas para o fazer.
Assistiu sentado ao magnífico espetáculo do final do dia, quando o sol se abre por completo numa despedida avassaladora, repleta de cor. Nunca deixaria de levantar os olhos para aquele quadro de luz criado. Pegou num grão de areia para a sua coleção de dias que não haviam sido seus. E saiu, não sem antes despedir-se com gratidão daquele espaço, enquanto cumprimentava o senhor de idade que, sem falhar, lançara-se nos seus exercícios vagarosos.